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Contratos digitais: apenas um meio ou nova modalidade contratual?



Quando iniciamos qualquer estudo sobre contratos, por muitas vezes nos deparamos com uma questão fundamental: qual a verdadeira natureza do contrato?


É inquestionável que todo contrato nasce de uma manifestação de vontade, que por muito tempo se associou com a própria origem da obrigação. Mas será que em plena era digital podemos continuar a sustentar que o contrato para ser válido precisa atender necessariamente aos requisitos do negócio jurídico[1] (a) agente capaz; b) objeto lícito, possível, determinado ou determinável; c) forma prescrita ou não defesa em lei)? E como fica o fenômeno da tipicidade social, que está implícita na existência de um contrato sem negócio jurídico a ele relacionado?[2]


Há doutrinadores contemporâneos que defendem inclusive que já vivemos a "morte" dos contratos como os conhecemos, a exemplo da obra clássica de Grant Gilmore[3]3, bem como retratam o seu ressurgimento com novas características mais adaptadas à realidade socioeconômica atual, em um contexto de globalização e eliminação de fronteiras físicas entre os Estados.


Pela teoria geral do contrato na perspectiva legislativa, não diferindo muito daquela adotada pelo Direito Francês e pelo Direito Alemão, e que é aplicada na grande maioria das Escolas de Direito do Brasil, compreende-se que o contrato seja constituído por duas declarações de vontade, e que, pelo menos, encontrem-se e coincidam: uma é formulada por uma proposta (Código Civil (LGL\2002\400)) ou oferta (Código Defesa Consumidor); e a outra pela aceitação e o consentimento.


Desse modo, o contrato somente poderá ser alcançado quando abranger seus três aspectos: a) acordo sobre a existência e natureza do contrato; se um dos contratantes quer aceitar uma doação e o outro quer vender, contrato não há; b) acordo sobre o objeto do contrato; se as partes divergem a seu respeito, não pode haver contrato válido; c) acordo sobre as cláusulas que o compõem: se a divergência campeia em ponto substancial, não poderá ter eficácia o contrato.


Neste sentido, as espécies de declarações de vontade poderiam ser assim classificadas: a) declaração da vontade expressa (realiza-se por meio da palavra, falada ou escrita, de gestos, sinais ou mímicas); b) declaração da vontade tácita (revelada pelo comportamento).[4]


Mas veremos que na evolução dos contratos, a tecnologia passou a interferir nestes princípios ao ponto de construir um novo formato, que subverte as premissas aqui apontadas assim como a estrutura tradicional do contrato, principalmente se do mesmo surgir um título de crédito capaz de circular o direito a um valor (riqueza) independente inclusive da obrigação que a originou.


O que terá mais força em uma discussão judicial, a informação por geolocalização,[5] hoje muito mais comum e acessível, já que quase todo aplicativo que se instala em um celular consegue embarcar este dado como um atributo simultâneo à manifestação de vontade, como ocorre quando se usa um serviço como, por exemplo, o do Easy Taxi[6] ou o local escrito no documento? Qual dos dois traz mais garantia de veracidade do ponto de vista técnico e deveria então prevalecer na análise jurídica da relação?


Por tudo isso, Juliana Pedreira da Silva, em sua obra Contratos sem negócio jurídico propõe a revisão do conceito de contrato, propondo que o mesmo deveria passar a ter a seguinte definição: "O contrato é a própria atividade econômica deflagrada entre dois ou mais centro de interesses, baseada ou não em negócio jurídico".


Por isso, o tema aqui em discussão é atual e de suma importância, bem como merece ser mais bem estudado, pois, afinal, os contratos digitais, ou também chamados eletrônicos, representam apenas a mudança do meio, que deixa de ser físico ou em papel, ou se de fato são uma nova modalidade dentro dos contratos atípicos. Ou, ainda, será que são uma outra coisa, um novo instituto, alguém que vá além do próprio conceito de contrato?


Para responder a esta questão, devemos voltar à análise do que são os contratos atípicos. Ou melhor, o que são os contratos típicos? A origem do conceito vem do termo latino typus que significa tipo, modelo, molde, forma, o que foi forjado. Typus vem do grego verbo typto (forjar).

De modo indireto, os contratos atípicos ou inominados seriam aqueles que não pertencem aos tipos, que possuem disciplina particular, desde que realizem interesses merecedores de proteção pelo ordenamento jurídico.


Nos contratos atípicos, o regulamento contratual resulta da vontade das partes, evidenciando o binômio autonomia privada-responsabilidade contratual.[7]7 A força contratual nasce, justamente, do poder de uma das partes de exigir da outra o implemento de uma obrigação, desde que tenha cumprido a sua.


Nos contratos atípicos, por não haver regulamentação legal específica, as partes devem acautelar-se na fixação das normas contratuais (cláusulas), desde que estas não contrariem os princípios gerais do direito (a ninguém lesar, dar a cada um o que é seu, viver honestamente etc.), os bons costumes e as normas de ordem pública.


A liberdade de forma significa que, em princípio, o contrato não está preso a formalidades para a sua validade, isto é, não está submetido às condições de formas particulares, pois vigora o princípio do consensualismo, pelo qual se compreende que um simples acordo oral pode ser suficiente.


No entanto, prevalece nos contratos atípicos também os princípios da autodisciplina dos contratos, da equidade e do pacta sunt servanda, que traz a força obrigatória do contrato dentro dos limites da lei.


Desse modo, podemos verificar que a disciplina dos contratos atípicos permite a contínua expansão e aperfeiçoamento dos contratos, podendo, eventualmente, de tempos em tempos, trazer alguma nova forma atípica para o âmbito dos contratos típicos, o que ocorre quando o mesmo passa a ser regulamentado por lei[8].


Logo, com o crescimento dos contratos atípicos, os mesmos também passaram a se subdividir, sendo que no Brasil se destaca a classificação feita por Orlando Gomes: No Brasil destaca-se a classificação de Orlando Gomes dividindo-os essencialmente em a) atípicos propriamente ditos e b) atípicos mistos.


É uma tarefa árdua e complexa fazer uma sistematização dos contratos atípicos. A lei poderia regular pelo menos o que já é conhecido pelos costumes e pela jurisprudência, assim como tem o papel de garantir maior respeito à dignidade humana e evitar o enriquecimento indevido, sem causa.


Sobre a questão da regulamentação dos contratos atípicos, sua importância consiste na fixação expressa ex lege do seu conceito, princípios gerais que os informam, princípios da liberdade contratual com as limitações específicas respectivas[9].

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"Artigo 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

Artigo 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim, na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé.

Artigo 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente.

Artigo 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio.

Artigo 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código."


O que seriam os contratos digitais ou eletrônicos? Podemos dizer que o nascedouro da aceitação jurídica dos contratos celebrados por via eletrônica ocorreu com a Lei Modelo da Uncitral,10 de 1996, que em seu artigo 5º. disse o seguinte: "não se negarão efeitos jurídicos, validade ou eficácia à informação apenas porque esteja na forma de mensagem eletrônica".


A mesma lei tratou ainda em seu artigo 11 sobre a formação e validade dos contratos, onde "salvo disposição em contrário das partes, na formação de um contrato, a oferta e sua aceitação podem ser expressas por mensagens eletrônicas. Não se negará validade ou eficácia a um contrato pela simples razão de que se utilizaram mensagens eletrônicas para a sua formação".


Sendo assim, considerando a classificação contemporânea dos contratos atípicos, os contratos eletrônicos seriam uma modalidade de contrato atípico.


Para Lorenzetti, o contrato eletrônico traduz uma transação eletrônica em que as declarações de vontade se manifestam por meios eletrônicos, por computador, podendo ser, inclusive, manifestadas automaticamente por um computador (sistema informático automatizado), ou mediante a oferta pública em um site e a aceitação pelo consumidor através de um click.


Na visão de Maria Eugênia Finkelstein, "o contrato eletrônico é caracterizado por empregar meio eletrônico para sua celebração" ou ainda, "o contrato eletrônico, por sua vez, é o negócio jurídico bilateral que resulta do encontro de duas declarações de vontade e é celebrado por meio da transmissão eletrônica de dados".


Mas, os contratos eletrônicos, após o advento da internet, passaram a ter uma dimensão muito mais ampla, alcançando características novas, fazendo surgir a categoria dos contratos telemáticos.


O contrato telemático (reúne telecomunicações e informática) apresenta todos os mesmos elementos essenciais, quais sejam, o acordo de vontades, o objeto e a forma (algumas legislações prescrevem a causa como outro elemento essencial, como o faz a lei espanhola, mas assim não o faz a lei brasileira).


Há ainda os contratos telemáticos à distância ou off-line, que são aqueles firmados por meios telemáticos que não permitem o imediato conhecimento da manifestação de vontade de uma parte contratante pelo outro contratante. São exemplos os contratos firmados em sites disponíveis na Internet e por e-mail, já que tais meios telemáticos não permitem saber se a parte contratante está conectada no exato momento da manifestação de vontade.


E começaram a surgir os contratos telemáticos desumanizados ou intersistêmicos (conhecidos pela sigla EDI - Eletronic Data Interchange) que consistem em negociações contratuais firmadas remotamente, ou seja, as manifestações de vontade dos contratantes perfazem-se por comandos eletrônicos e computacionais, sem o comando da parte contratante.


No entanto, com o uso de novas tecnologias e o surgimento da "internet das coisas", que fez crescer as relações contratuais intersistêmicas, onde máquinas manifestam a vontade de contratar perante outra, gerando obrigações entre elas, os contratos telemáticos evoluíram para um novo conceito, chamado de contratos digitais.


Junto com a evolução da forma, acompanhou também a transformação da manifestação de vontade, que assim como a parte que contrata e a testemunha passarão a ser máquinas, o registro desta contratação, mesmo quando por ato humano, também é feito por uma máquina, com a vantagem de se aumentar a segurança jurídica da relação através de uma maior prova de autenticidade (prova de autoria).


Ou seja, com o aprimoramento da técnica, pode-se afastar por completo o risco do repúdio de uma contratação digital, conforme a mesma está evoluindo para o uso da biometria. Mas este avanço ainda depende, no Brasil, de lei, para que se possa atribuir uma identidade digital obrigatória a todo brasileiro, o que vem ocorrendo com o andamento do novo modelo de identidade.[10]


A questão da aceitação da assinatura digital como manifestação de vontade plenamente válida, inclusive quando coletada de testemunhas, fiadores e avalistas é essencial para garantir que os contratos eletrônicos tenham pela eficácia como títulos executivos completos. É o que começou a entender o judiciário nacional também:


"Processual civil. Agravo de instrumento. Execução de título extrajudicial. Exceção de pré-executividade. Contrato eletrônico. Assinatura digital. Validade. Inclusão do fiador após a citação do executado. Possibilidade. Artigo 264 do CPC (LGL\2015\1656). Inaplicabilidade.


Assim, podemos concluir que a liberdade no âmbito contratual revolucionou os meios jurídicos, na história do direito, e continua revolucionando, só que agora com um novo ferramental tecnológico a serviço da evolução humana.


Independentemente do que o contrato seja, ou venha a se tornar, há um consenso em torno dos princípios que norteiam a sua tutela, quais sejam: a boa-fé, a vedação ao enriquecimento sem causa, o da proteção pela aparência, e alguns mais que possamos identificar como essenciais à tutela de relações éticas e sustentáveis.


Por último, a evolução tecnológica está trazendo mais força jurídica para os contratos, no sentido de geração de provas que incluem até a geolocalização das partes (local de celebração), os logs de tempo (para evitar adulteração do momento de celebração do mesmo), assim como maior certeza de autoria e integridade e que o fato foi devidamente testemunhado, logo ocorreu (só que cada vez mais por máquinas e não por humanos). Tudo isso deverá aumentar sua executividade e não o contrário.


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